sábado, 1 de outubro de 2011

Hiroshima

“A partir de hoje nada conta melhor o horror de Hiroshima... Um dos escritores mais vigorosos da era moderna” Washington Post



Em 1914, enquanto a Primeira Guerra Mundial começava a contabilizar seus mortos, nascia na cidade chinesa de Tientsin um menino chamado John Hersey, totalmente alheio às agruras passadas por milhares de soldados que morriam ou eram mutilados nas trincheiras da guerra. John só conheceria de perto o que um conflito dessa magnitude é capaz de causar trinta e dois anos depois, em 1946, quando, trabalhando para a revista The New Yorker, foi despachado para o Japão com a missão de escrever uma reportagem sobre o aniversário da explosão da bomba de Hiroshima. O jornalista, filho de missionários americanos que regressaram aos Estados Unidos em 1925, escolheu seis sobreviventes e através de seus depoimentos reconstruiu o momento da explosão e o suplício dos dias seguintes. O texto, intitulado Hiroshima, foi eleito em 1999 pela New York University a melhor reportagem do século, superando nomes como Gay Talese, Norman Mailer, Truman Capote, Tom Wolfe e Joseph Mitchell.


A principal marca de Hiroshima é a retidão de estilo, que prescinde de adjetivos e é ancorado por uma apuração meticulosa, capaz de recompor com exatidão estarrecedora a trajetória de cada um dos sobreviventes ouvidos pelo jornalista. Foram 17 dias de entrevistas que deram origem a um reportagem de 31.347 palavras, a primeira a ocupar uma edição inteira da The New Yorker. Os trezentos mil exemplares da revista foram rapidamente esgotados por leitores ávidos para desvendar o que o poderio bélico americano fora capaz de causar um ano antes. Depararam-se com um artigo que começava assim:

"No dia 6 de agosto de 1945, precisamente às oito e quinze da manhã, hora do Japão, quando a bomba atômica explodiu sobre Hiroshima, a Srta. Toshiko Sasaki, balconista do departamento pessoal da East Asia Tin Works, tinha acabado de sentar-se na sua cadeira no escritório central e virava a cabeça para falar com a garota ao lado.”


O Enola Gray, avião americano utilizado para despejar a bomba sobre a cabeça de 245 mil japoneses, passou despercebido pelas baterias antiaéreas nipônicas. Quinze minutos antes da bomba, às oito horas, foi disparada a sirene que indicava aos civis que o espaço aéreo estava limpo, ou seja, sem perigo algum. Muitas pessoas saíam normalmente de suas casas para os afazeres diários, apesar da guerra em curso. Um quarto de hora mais tarde, após a explosão, descrita por Hersey como um “clarão silencioso”, teria início a saga dos seis personagens de Hiroshima: a senhorita Toshiko Sasaki, Dr. Masakazu Fujii, a viúva Hatsuyo Nakamura, o padre alemão Wilhelm Kleinsorge, Dr. Terufumi Sasaki e o reverendo Kiyoshi Tanimoto.


“Uma visão do inferno... suas imagens terríveis remetem ao Inferno de Dante”  The Times


Vítimas



Os cinco capítulos da reportagem de John Hersey são erigidos a partir da alternância dos relatos de cada um dos personagens, cujas histórias algumas vezes se cruzam na Hiroshima destruída pela bomba.

Salvo por abrigar-se entre duas pedras na hora da explosão, o reverendo Tanimoto foi um dos hibakushas – como foram chamados os sobreviventes afetados pela bomba atômica – mais diligentes na ajuda aos cerca de 100 mil feridos. Ele tentou até a exaustão ajudar os milhares de moribundos que se aglutinaram no Asano Park, área de grande concentração de vítimas da bomba. Em um de seus périplos em busca de água e comida para os feridos, o reverendo é personagem de um dos momentos mais tocantes da reportagem. Ao passar pelo parque, encontra sua vizinha , senhora Kamai, abraçada ao corpo da própria filha, morta a pelo menos um dia. A mulher, aflita, exulta-se ao avistar o reverendo e lhe pede, encarecidamente. “Por favor, você me ajuda a encontrar meu marido”. Apesar de saber que a chance de encontrar o rapaz vivo era mínima, uma vez que ele estava servindo ao exército, Tanimoto diz que tentaria encontrá-lo. A mulher, grata, responde: “Você tem que achá-lo! Ele amava tanto o nosso bebê. Eu quero que ele a veja uma vez mais.” A senhora Kamai permaneceu abraçada ao bebê morto por quatro dias.


“A melhor reportagem da história” Jornal do Brasil


Parece inapropriado utilizar verbos como “gostar” e “apreciar” para se dirigir a reportagem de John Hersey, tamanho é o horror que brota a cada página. Outro relato impressionante é do padre alemão Wilhelm Kleinsorge, que, ao passar pelo mesmo Asano Park ouviu uma voz pedindo água, vinda da direção de arbustos. Ao se aproximar, Kleinsorge percebeu que o pedido vinha de um soldado, que não estava sozinho: eram cerca de vinte homens com a face completamente queimada; no lugar dos olhos, havia uma densa penumbra, e o que antes fora seus globos oculares havia se transformado num líquido que escorria pelo queixo. A mesma coisa aconteceu com todos que, por azar, olhavam para cima no momento da explosão.



“A arte de descrever o que parecia indescritível” O Estado de S. Paulo



A riqueza das histórias de cada sobrevivente retratado no livro é tão notável que soa absurdo pensar que todo o trabalho de triagem e entrevistas foi realizado em apenas 17 dias, e que o artigo foi escrito em pouco mais de um mês e publicado no dia 31 de agosto de 1946.


Jornalismo em essência

Hiroshima, como o sumiço imediato das 300 mil revistas pode indicar, foi um estrondoso sucesso. Ponto final? Não quando o sangue que corre nas veias do autor contém o gérmen do jornalismo, aquela inquietação constante diante das coisas, o não aceitar que as histórias narradas terminam quando vão para o prelo. Quarenta anos depois, Hersey voltou para Hiroshima a fim de reencontrar os hibakushas que protagonizaram sua melhor repotagem.

O epílogo planejado por Hersey é perfeito, pois dá conta tanto da natural curiosidade do leitor a respeito da vida de cada personagem como monta um painel das implicações geopolíticas das bombas atômicas. Entremeando os parágrafos, o jornalista acrescenta informações sobre os testes com bombas nucleares e de hidrogênio que as nações foram conduzindo ao longo dos quarenta anos de hiato entre a bomba de 1946 e o seu retorno ao Japão. Um singelo protesto contra a impessoalidade da indústria bélica, sempre avançando apesar das incontáveis mortes que causara até então. A tecnologia de guerra não cessou seu avanço, e vários outros morreram após as bombas de Hiroshima e Nagasaki. Apesar disso, o registro feito por John Hersey permanece. E, afinal, enquanto houver memória haverá esperança de dias melhores.


Sobre o autor


Durante a carreira, John Hersey publicou dezessete obras de ficção, entre elas A Bell for Adano (1945), vencedora do Prêmio Pulitzer. Entram nesta lista também: The Wall (1950), A Single Pebble (1956), The Child Buyer (1960), The Call (1985), Fling and Other Stories (1990) e Antonietta (1991). Hersey escreveu ainda outros sete livros de ensaio e reportagem, dos quais foram publicados no Brasil Hiroshima (Cia das Letras, 2002), como parte da coleção Jornalismo Literário, e A Conspiração (Editora Bloch, 1972). John Hersey morreu em 1993, aos 78 anos.

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