quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Cinema e Loucura: uma parceria de sucesso

De todas as formas de arte, o cinema é aquela que melhor se presta a retratar a loucura, por uma característica do próprio aparato cinematográfico. Um filme é composto por uma torrente de imagens e sons que afastam o telespectador da realidade que o cerca, criando uma dualidade entre o que está sendo projetado e aquilo que acontece fora da tela. Levando em conta também a sala escura e os dispositivos utilizados pela narrativa clássica, cria-se no cinema o cenário perfeito para a encenação de transtornos mentais.

Além disso, convém lembrar que cinema e psiquiatria surgiram no mesmo momento histórico, no final do século XIX. Enquanto Lumière, Edison, e outros empreendedores da sétima arte apresentavam ao mundo uma nova modalidade narrativa, em 1895, Sigmund Freud escrevia o livro Projeto para uma Psicologia Científica, prelúdio das teorias psicanalíticas que o tornariam célebre anos mais tarde. Essa coincidência cronológica contribuiu para uma intensa troca de saberes e experiências entre esses campos da ciência e da arte. Psiquiatras da época, como Kraepelin, esperavam que o cinema ajudasse a compreender o estado patológico de doentes psiquiátricos, enquanto cineastas viram nos transtornos de ordem mental um fio narrativo muito promissor.

Cena do filme O gabinete do Dr. Caligari
Ao observar a produção cinematográfica do início do século XX, já é possível constatar como essa imbricação estava espelhada nas telas. O filme The Escaped Lunatic and the Maniac Chase, de 1904, mostra um interno de um instituto psiquiátrico que insistia em proclamar-se o próprio Napoleão Bonaparte; Maniac Cool, filmado em 1909, tem como personagem central um infanticida. Essa parceria acentua-se ainda mais na década seguinte, com os filmes expressionistas: O gabinete do Doutor Caligari, clássico do expressionismo alemão, tem como mote a temática da hipnose, praticada pelo Doutor Caligari para incitar seu assistente a cometer crimes. Doutor Mabuse, de 1922, tem o mesmo viés.

Flávio Ramos Tambellini, coordenador docente da Escola de Cinema Darcy Ribeiro, no Rio de Janeiro, explica que esse potencial de adaptação dos transtornos mentais para o cinema tem como base na própria estrutura discursiva da dramaturgia. “Um filme, segundo o modelo clássico, tem três atos: a introdução dos personagens, o desenvolvimento de conflitos entre eles e a resolução dos conflitos. Figuras perturbadas, fora da normalidade, trazem conflitos que fazem a narrativa avançar. O personagem ‘maluco’ é mais cinematográfico. O desvio seduz; a norma, não”, argumenta.

É notório que os transtornos mentais são um excelente elemento dentro do universo narrativo do cinema, mas seria a recíproca uma realidade? Em artigo, os professores do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre (FFFCMPA) defendem que sim, o cinema pode ser muito útil no ensino da psiquiatria e no tratamento de pacientes. “O insight potencial de filmes cinematográficos pode ser uma útil e prática ferramenta no ensino e aprendizado da Psiquiatria. Da mesma forma, esta nova metodologia pode ser aplicada na prática clínica como adjuvante no esclarecimento e terapêutica de alguns paciente”, observam. Ademais, a abordagem da psiquiatria no cinema ajuda a conscientizar o público leigo sobre esse segmento da medicina, comunicando questões importantes como o processo de reabilitação dos doentes e problemas éticos que envolvem o tratamento psiquiátrico.


Erros e acertos: como a cinema pode ajudar a psiquiatria

Obviamente, antes de considerar qualquer contribuição que o cinema possa oferecer ao tratamento e ensino dos distúrbios psiquiátricos, é preciso deixar claro que os filmes não têm finalidade didática; são submetidos, primordialmente, às escolhas artísticas e ao poder econômico de seus realizadores. Portanto, nem todos os filmes representam os transtornos mentais de maneira acurada. 

Nesse sentido, é fundamental o trabalho dos pesquisadores J. Landeira-Fernandez e Elie Chaniaux no livro Cinema e Loucura – conhecendo os transtornos mentais através dos filmes, onde estão catalogados 184 filmes nos quais ocorrem personagens que apresentam algum sintoma de um dos distúrbios psiquiátricos indexados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-IV-TR), referência na sintomatologia das doenças mentais. Depois de apresentar uma sucinta descrição dos sintomas de cada transtorno mental, os autores passam a analisar como essa patologia foi tratada no filme. De acordo com Cheniaux, que é Professor do Programa de Pós-Graduação em Psiquiatria e Saúde Mental do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, mesmo quando os distúrbios são retratados erroneamente, servem como exemplos negativos, erros que os profissionais da área não deveriam cometer ao fazer o diagnóstico de um paciente.

Por sinal, a questão do diagnóstico é um problema recorrente na psiquiatria. “Na medicina, as doenças são definidas a partir de suas causas. Mas na psiquiatria as categorias são descritas apenas pelos sintomas e isso é bastante criticável. Frequentemente, um mesmo paciente preenche critérios diagnósticos para mais de uma categoria nosológica ao mesmo tempo. É algo até certo ponto arbitrário”, aponta o professor. 


A corrente anti-psiquiátrica no cinema

A partir da década de 50, a adoção de novos psicofármacos, remédios usados para tratar os pacientes com transtornos mentais, mudou o foco da psiquiatria para o equilíbrio químico do cérebro. A possibilidade de os distúrbios psiquiátricos terem origem em um desarranjo no nível de neurotransmissores – substância química liberada pelo neurônio no momento da sinapse – alavancou a utilização de remédios como o Prozac, Celexa e Thorazine.

Como esses medicamentos provocavam uma série de efeitos colaterais, surgiu, no bojo da contracultura da década de 60, um movimento antipsiquiatria, formado essencialmente por aqueles que achavam que o tratamento a base de psicofármacos desumanizava o paciente.

Jack Nicholson em
Um estranho no ninho
O cinema, é claro, esteve presente nessa corrente de protesto: filmes como Family life (1971), de Ken Loach; Uma mulher sob influência (1974), de John Cassavetes e Um estranho no ninho (1975), de Milos Forman, endossavam a crítica ao tratamento psiquiátrico voltado para as equações químicas da mente humana.


Cinepsiquiatria – o exemplo da Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre


No livro Psychoanalysis on the move: the work of Joseph Sandler, R. D. Chessick, psiquiatra americano, alerta para a necessidade de uma formação mais humanística dos profissionais que desejam ingressar na psiquiatria. “A urgência de treinarmos futuros psicoterapeutas no aspecto humano e submergi-los nas artes tanto quanto na ciência tem fundamento teórico. Para um psicoterapeuta realizar um bom trabalho, este deve estar familiarizado tanto com a linguagem do entendimento científico, quanto com a linguagem da imaginação humanística, e este psicoterapeuta deve ser capaz de alterar, com habilidade e destreza, esta linguagem segundo sua precisão”, afirma.

Atento a essa premência de pluralizar as formas de ensino, o Curso de Medicina da FFFCMPA criou a Cinepsiquiatria, uma metodologia de ensino que baseia toda a discussão teórica sobre a psiquiatria em filmes comerciais. Os alunos do curso formam uma Comissão Organizadora que fica responsável pela escolha de um tema ou módulo – ou seja, os transtornos que serão debatidos – e, a partir daí, organizam as aulas, que podem ser restritas ao público interno da faculdade ou abertas à comunidade. O palestrante responsável pelo módulo escolhe um filme que ilustre o tema escolhido e aponta os detalhes que ajudarão os estudantes a entenderem de uma maneira mais palatável as características de cada patologia, uma discussão que certamente é mais entediante se restrita ao jargão acadêmico e tratada somente dentro das salas de aula.

De acordo com os docentes da FFFCMPA, o aprendizado da psiquiatria por meio de filmes é eficaz porque desperta a identificação do estudante com o tema. Ao entrar em contato com imagens e sons concernentes ao tema, o aluno consegue relacionar melhor a memória recente, alimentada pelas discussões posteriores ao filme, com as experiências anteriores, onde estão armazenados conceitos estudados em sala.
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