Receber a notícia de que uma narrativa literária da qual se é fã vai ganhar as telas de cinema quase sempre é motivo de alegria. Afinal, aquela história pela qual você tanto preza vai ser contada para mais pessoas, agora com o recurso da imagem. Seus personagens, os favoritos e aqueles mais detestados, terão um rosto definido e ficarão ainda mais fixados em sua memória afetiva.
Essa mudança de mídia, entretanto, também costuma trazer problemas. Não é raro encontrar pessoas que leram um livro adaptado para o cinema lamentarem a ‘deturpação’ da história, ou a escolha equivocada de um ator para determinado papel, direção sem pulso, e vários outros detalhes que fazem a diferença – nessa hora, até a trilha sonora, inexistente na literatura, é questionada pelos fãs.
Nesse artigo, irei analisar um exemplo clássico desse tipo de ruído gerado quando um livro é adaptado para a sétima arte. O Iluminado (The Shining), escrito por Stephen King em 1977, uma das referências quando o assunto é o gênero terror. A obra caiu nas mãos de Stanley Kubrick, que após terminar Barry Lyndon (1975), um filme de época que obteve pouco sucesso nas bilheterias, resolveu aventurar-se em um novo gênero, o mesmo tão explorado pelo escritor americano. Kubrick comprou os direitos de O Iluminado e o longa, até hoje considerado um épico dos filmes de terror, saiu em 1980 com expressivo sucesso de público.
Os questionamentos quanto à fidelidade do filme feito pelo cineasta americano ao livro de King não demoraram a surgir. Muitos leitores reclamaram do estilo autoral de Kubrick, que sempre impregnou seus roteiros de uma perspectiva bastante pessoal das obras que adaptava – fora assim com Laranja Mecânica (Clockwork Orange, 1971) e Lolita (idem. 1962), para citar alguns exemplos. Até o próprio Stephen King, insatisfeito com a versão cinematográfica de seu romance, acabou produzindo, em 1997, uma série de TV em três capítulos sobre O Iluminado, adaptação muito mais fiel ao livro.
A pergunta que se coloca nesses casos é: até que ponto é válido falar de uma ‘fidelidade’ à obra original? Uma nova leitura de um romance ou até mesmo o relançamento de um roteiro deve ser limitada pelas características presentes no original? Esses são alguns pontos que serão tratados nas próximas páginas deste artigo.
OS ELEMENTOS DO ROMANCE
Para início de conversa, vamos traçar um pequeno panorama do que é apresentado por Stephen King em seu livro. O Iluminado conta a história da família Torrance, formada pelo pai, Jack, a mãe, Wendy, e o filho, Danny. Desempregado, Jack consegue uma vaga como zelador de inverno do Overlook, um hotel de veraneio que fica completamente isolado do resto do mundo durante a época mais fria do ano. Acompanhado de sua família, Jack terá que cuidar das instalações do Overlook de outubro a maio do ano seguinte.
À primeira vista, parece uma missão simples, mas King nos dá alguns elementos que vão construir a dramaticidade – e o terror – da história. Jack Torrance é um professor universitário, especializado em literatura americana, e perdera seu último emprego por conta de um problema pessoal com um de seus alunos. Jack liderava um grupo de estudos do qual fazia parte George Hatfield e, após uma série de desentendimentos, George fica furioso com o professor, a ponto de tentar furar os pneus do carro dele. Jack pega seu pupilo no flagra, e acaba espancando-o no estacionamento da universidade.
O patriarca da família Torrance também carregava consigo a estigma de ser um alcoólatra – o mesmo fardo do pai, presente em varias recordações do personagem. O vício, por sinal, já o levara a um acesso de fúria bem antes do episódio que resultou em sua demissão. Quando Danny tinha apenas três anos, teve o braço quebrado pelo pai depois de bagunçar alguns papéis de seu escritório, entre eles uma peça na qual Jack trabalhava. O incidente fragilizou e muito a relação do casal Wendy/Jack, que via a temporada no Overlook como sua última chance.
Shelley Duvall interpreta Wendy no filme de Kubrick |
Por fim, Danny, o garoto cujo dom intitula o romance. Danny é considerado ‘iluminado’ por ter uma sensibilidade diferente com relação ao ambiente que o cerca. Ele é capaz de ver coisas, ouvir pensamentos e ser influenciado por espíritos que nem sempre desejam seu bem. Ele tem um amigo imaginário chamado Tony, que o alerta sobre os perigos que rondavam a mudança para o Overlook. Apegado ao pai, ele ignora os alertas em nome de uma possível redenção de Jack.
Danny falando com Tony no filme: presságio de um futuro macabro |
DECIFRANDO A VISÃO DE STANLEY KUBRICK
Real is good. Interesting is better.
Stanley Kubrick
Se na versão literária de O Iluminado temos uma construção psicológica densa, que direciona a narrativa para os acontecimentos funestos que terão lugar no Overlook, o filme de Kubrick, ao contrário, não nos conta nada. E isso não é uma negligência do diretor e/ou roteirista, é uma opção.
Imensidão do hotel acentua a sensação de insegurança |
Um dos aspectos decisivos para o sucesso visual do filme foi o uso ostensivo da steadicam, técnica de filmagem que havia acabado de ser criada. Com a câmera móvel, acompanhando as andanças dos personagens pelo hotel, Kubrick, ao contrário da estética clássica do terror, que sempre optou por esconder o ponto de ação, o diretor deixa sempre o cenário muito amplo e visível, o que coloca o espectador dentro da cena.
Steadicam faz de cada passeio de velotrol um pesadelo |
Para aproveitar melhor essa estética visual do longa, Kubrick também insere alguns elementos que não estão no livro e acabam sendo decisivos para a construção da tensão. O primeiro deles são os passeios de velotrol de Danny pelos corredores do hotel. O diretor usa a câmera móvel para nos colocar no ângulo de visão de Danny (Danny Lloyd), bem perto do chão, e a imensidão quase opressora do prédio sobre o garoto fica latente. A cada curva para entrar em um novo corredor, vivemos a expectativa de encontrar alguns dos mistérios que o Overlook esconde – esse uso da câmera, ao mesmo tempo que nos coloca perto da visão do personagem, também passa a impressão de um voyeur que tudo segue, podendo ser interpretada como a visão do próprio hotel sobre seus hóspedes.
Ápice da loucura em palavras repetidas |
Um segundo elemento é a peça que Jack Torrance (Jack Nicholson) pretende terminar durante seu período como zelador. Esse trabalho literário de Jack aparece no livro, mas não tem tanto destaque como no filme de Kubrick, que utiliza a frase “Only work and no play makes Jack a dull boy” repetidas várias vezes ao longo dos originais para dar forma a uma das cenas mais perturbadoras do filme, o momento em que a loucura do protagonista se torna insuperável.
Dentro dessa composição de uma atmosfera de insanidade deve-se destacar também a maneira como Kubrick trabalhava. Perfeccionista, ele costumava repetir um mesmo take à exaustão, por mais que a cena ideal fosse obtida logo nas primeiras tentativas. Nos extras do DVD de O Iluminado, um dos biógrafos de Kubrick lembra que a loucura que Jack Nicholson consegue imputar em seu personagem, culminando na icônica cena do arrombamento no banheiro do quarto, seguido do grito “Here’s Jhonny”, se deve muito à repetição exaustiva. Aquele Jack Nicholson que aparece no filme é resultado da 26ª ou 27ª tentativa do ator que, sem saber mais o que tirar da cena, acaba explorando expressões e gestos cada vez mais exagerados, insanos. A loucura é quase naturalizada no processo de filmagem.
HERE'S JOHNNY! |
Uma das maiores críticas de Stephen King ao filme de Kubrick era exatamente essa sublimação do passado de problemas psicológicos dos personagens. Para o autor do livro, a insanidade apresentada por Jack Torrance no Overlook, no filme, é inexplicável, não se sustenta pois problemas como o alcoolismo ou os conflitos com o pais sequer são mencionados.
Por isso, na sua minissérie para a televisão, de 1997, King gasta todo o primeiro episódio na apresentação dos antecedentes da família Torrance. É uma tentativa válida, mas que alonga demais a história. A versão audiovisual de King para o livro tem quase quatro horas e meia de duração, dividida em três episódios. Aqui vale a discussão: a versão de Stephen King leva para a tela quase todos os elementos do livro, mas será por isso mais ‘fiel’ ao romance?
Stephen King fez outra versão do filme em 1997 |
Ao tentar readquirir o domínio sobre seu livro, King produz uma minissérie televisiva que não considera a transição de mídia. Assim sendo, produz um seriado enfadonho, que tenta explicar demais a situação, com diálogos exagerados e por vezes pueris, como se desconhecesse que o elemento visual já diz muita coisa, tornando desnecessários alguns diálogos que só cabem no contexto da literatura.
3 comentários:
Demais. Bem esclarecedor! Parabéns!
Mesmo assim não gostei da adaptação do Kubrick. Faltou paixão nos personagens, Shelley Duvall parecia uma doente no filme.
O filme é tão bom que apaguei umas 100 vezes assistindo.
Muito boa sua análise, me esclareceu muitas coisas.
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