quinta-feira, 14 de novembro de 2013

O relacionamento entre os jornalistas e suas fontes de informação no cinema

Formas de narrativa surgidas em momentos históricos diferentes e com finalidades distintas, cinema e jornalismo partilham um mesmo ideal de objetividade. Tanto o trabalho de apuração do repórter quanto a película cinematográfica têm, idealmente, a capacidade de desvelar um fato ou uma cena em seu estado natural, aptidão definida por Stela Senra, pesquisadora nas áreas de cinema, vídeo e fotografia, como uma "transparência de registro".

No entanto, esse ideal de honestidade do relato pode ser comprometido por diversas variáveis presentes nos dois processos. Seja pela rudimentar trucagem tão utilizada por Georges Méliès na sétima arte ou por um simples ruído de comunicação entre o jornalista e seu editor, o registro tende a ficar mais turvo à medida em que se aproxima do consumidor final. No caso do jornalismo, foco principal deste trabalho, um dos fatores fundamentais para definir qual o grau de transparência de uma notícia são as fontes de informação, ponto basilar para a produção de qualquer reportagem.

Até que ponto é possível confiar
no que te dizem?
A partir daí, surge um dilema que confronta diariamente os profissionais dedicados à produção de notícias: até que ponto é possível confiar numa fonte? Qual deve ser o grau de relação entre o jornalista e a pessoa/organização responsável por lhe relatar um fato que ele não pôde presenciar? O assunto é tão sensível que os manuais de redação se preocupam em orientar quase que didaticamente os repórteres iniciantes. No caso da Folha de S. Paulo, o documento enumera quatro tipos diferentes de fontes, sendo a primeira delas, definida como "tipo zero", aquela que tem "tradição de exatidão" e "prescinde de cruzamento de informações". Mesmo essas, ressalta o manual, podem conter erros de informação.

As fontes na história do jornalismo

Para compreender melhor o papel das fontes de informação no jornalismo contemporâneo, é fundamental traçar um breve panorama histórico da participação desses agentes na apuração de notícias pela mídia. A partir da invenção da prensa de tipos móveis por Johannes Gutenberg, no século XV, iniciou-se um progressivo aumento na publicação de periódicos noticiosos. Nessa fase incipiente da imprensa, ainda não estava consolidada a necessidade de relatar os fatos a partir do testemunho de alguém diretamente envolvido; predominava a visão do editor ou tipógrafo sobre os acontecimentos da época.

Decidir o que era ou não notícia - ou seja, definir os critérios de noticiabilidade - era uma prerrogativa exclusiva do profissional da imprensa. Essa forma de organização começa a mudar de maneira acelerada no decorrer do século XIX, quando uma série de fenômenos políticos e sociais se refletem no trabalho dos jornalistas no Ocidente. A consolidação do capitalismo e a Revolução Industrial, por exemplo, resultaram no crescimento das cidades, mercado vital para os periódicos que surgiriam naquele período, como o The World e o The New York Times, ambos de Nova York. Nessa esteira, gradualmente o ensino básico gratuito e a "democratização" da vida política - leia-se aqui sufrágio universal para homens maiores de idade - ganharam força nos principais países da Europa e nos Estados Unidos, trazendo consigo um campo frutífero para intensos debates que ocupavam espaço nas páginas dos jornais. 

Nesse cenário, o potencial de influência da imprensa, especialmente dos jornais impressos, tornava-se cada vez maior. O chamado Quarto Poder, conforme cunhou o político irlandês Edmund Burke, despertava o interesse de muitos. Configura-se, então, o campo de atuação das fontes de notícias.

Mais informação, mais jornais e mais
trabalho para apurar as notícias
A principal consequência deste novo panorama é que o trabalho dos jornalistas ganha muito em intensidade. Com uma diversidade maior de assuntos e interesses envolvidos, um repórter ou editorialista passa a escrever sobre fatos que ele não presenciou e cuja natureza lhe é completa ou parcialmente desconhecida. Mais atarefados e mais tempo presos dentro das redações, esses profissionais têm como alternativa fiar-se no testemunho de terceiros, não necessariamente envolvidos com os jornais mas, às vezes, interessados em que determinada notícia seja veiculada com um enfoque específico. 

Não demorou muito para as grandes corporações - governos, empresas, partidos - dominarem essa nova interface de comunicação com a imprensa, enxergando a notícia como um produto que deve ser vendido ao público da maneira que melhor represente os interesses dos detentores dessas informações. 

As fontes de informação no cinema

A relação entre fontes e jornalistas, e seus consequentes dilemas éticos, sempre foi um prato cheio para as narrativas cinematográficas. Desde O Poder da Imprensa (The Power of the Press, EUA, 1909), primeiro filme a retratar o universo do jornalismo, essa é uma questão essencial para construir a personalidade do repórter, que tende a oscilar entre vilão e herói conforme a narrativa.

No cinema, o que define se o jornalista é um bom ou mau profissional, na maioria dos casos, é como ele lida com as informações que obtém. Conforme define Isabel Travancas no artigo "Jornalista como personagem de cinema", o mau repórter é aquele "profissional que não mede esforços para conseguir seus objetivos e dar o ‘furo’ de reportagem", empenho que inclui chantagem, manipulação de informações e quaisquer outros artifícios tangíveis. Por outro lado, o bom jornalista "identifica-se com os valores do mundo público e defende a verdade, a democracia, o bem comum", o que implica em maior cuidado no relacionamento com as fontes e afinco na checagem de informações.

O típico jornalista sem limites morais para a obtenção de notícias é encarnado pelo personagem de Kirk Douglas em A montanha dos sete abutres (Ace in the hole, 1951), longa dirigido por Billy Wilder. Charles Tatum, um repórter com carreira decadente, é forçado a trabalhar num jornal interiorano e descobre que Leo Minosa (Richard Benedict), um trabalhador local, está preso entre as ruínas de uma montanha - uma informação exclusiva. Ao notar que essa poderia ser sua chance de colocar seu nome novamente em evidência, ele publica a história, que rapidamente desperta o interesse de toda imprensa americana, mas cuida para que só ele tenha acesso à tal montanha, de modo que os demais jornalistas atraídos para o local dependam das informações dele, Tatum, para noticiar o fato. Para ele, o mercado dita o tipo de trabalho que um jornalista precisa empreender, ideal expresso num dos diálogos do filme: "Eu posso cuidar de grandes notícias e pequenas notícias, e se não houver notícias eu saio e mordo um cachorro".

Neste ponto, o roteiro escrito por Billy Wilder, Lesser Samuels e Walter Newman esboça uma pequena anatomia da estrutura de obtenção de notícias que vigora até hoje em muitos casos. Uma única pessoa (Tatum) tem acesso a uma determinada informação que interessa a todos, e com isso controla o fluxo do noticiário de acordo com seu interesse. Além disso, Charles Tatum conhece bem que tipo de notícia atrai seus colegas de profissão, e por essa razão seleciona de maneira criteriosa tudo que deve ser falado sobre o histórico familiar de Leo Minosa, de maneira a construir um personagem adequado para a mídia presente. A linha de pensamento de Tatum fica bem delineada quando, em certo ponto do filme, ele afirma: "A morte de centenas ou milhares de pessoas não tem o mesmo interesse que a morte de uma única pessoa. A morte de um só tem interesse humano, enquanto a morte de milhares é apenas um número”.

Situação similar é apresentada em Mera Coincidência (Wag the dog, 1997), filme dirigido por Barry Levinson. A trama tem início com uma ameaça de crise no governo americano: em viagem diplomática e às vésperas de tentar a reeleição, o presidente dos EUA recebe a notícia de que uma jovem irá a público acusá-lo de assédio sexual. O que fazer para resolver o problema? Pautar a mídia, ora. Rapidamente, uma equipe é montada para gerenciar a situação, e a ideia arquitetada por Conrad Brean (Robert de Niro), assessor pessoal do político, é espalhar a notícia de que o país estava em guerra contra a Albânia para desviar a atenção do escândalo sexual pelas duas semanas que restam até as eleições presidenciais. Curiosamente, o filme foi lançado um ano antes do maior escândalo sexual da história americana, envolvendo o então presidente Bill Clinton e a estagiária Mônica Lewinsky. Até por conta disso, o longa chegou ao Brasil com o título Mera Coincidência.

No filme de Levinson, tal qual acontece em A Montanha dos Sete Abutres, apenas um lado - o governo - tem o monopólio da informação, e esse poder é tão grande que é capaz de impor um agendamento noticioso e forçar a mídia a reportar uma guerra inexistente. Essa inversão de papéis tem por objetivo controlar a mensagem que chega ao público. 

Interessante também notar as estratégias utilizadas para que a farsa montada em torno de um pretenso conflito bélico sejam bem-sucedidas. Da mesma forma que Tatum preocupava-se em construir o personagem de sua tragédia domesticada, aqui o gabinete de crise presidencial recorre a um produtor de Hollywood para viabilizar a dramatização da guerra. Cria-se um vídeo da zona de combate onde é inserida a figura da civil aflita em busca de abrigo; quando as circunstâncias forçam o fim do embate imaginário, surge então um soldado solitário, deixado atrás das linhas inimigas e que transforma-se num símbolo com o qual toda a população se identifica. Enfim, o longa abusa dos clichês para satirizar a maneira incauta com que muitas vezes a imprensa mergulha de cabeça na versão oficial sobre os fatos. 

Aproveitando-se da condição de ser a principal fonte de notícia de um país, os governos utilizam os meios de comunicação para fins de legitimação política e social, ponto principal da crítica presente no filme e falha comum a muitos jornalistas. Cabe ao repórter, mesmo em situações como essa, onde a fonte da notícia também teria, presumidamente, o dever de zelar pelo interesse público, buscar alternativas para confirmar os fatos vendidos como verdade.

Sally Field como a repórter Megan
Mas seria esse tipo de prática algo exclusivo das grandes corporações? Em Ausência de malícia (Absence of malice, 1981), filme dirigido por Sydney Pollack, somos confrontados com um cenário ligeiramente diferente. Desta vez Gallagher ( Paul Newman), um executivo presumidamente honesto, porém com um histórico de integrar uma família de mafiosos, tem a reputação atacada por um jornal, que publica uma reportagem acusando-o de um crime. Gallagher, então, vai atrás da jornalista que escreveu a matéria e começa a conduzir uma segunda apuração, desta vez guiada por seus interesses. 

Por meio de uma narrativa pessoal, o longa de Pollack leva a uma reflexão sobre como o trabalho dos jornalistas, seja ele bem feito ou não, tem um impacto direto sobre a vida das pessoas - aqui resultando inclusive em morte. E o vetor de tudo acaba sendo a ambição desmedida da repórter Megan (Sally Field) em ver seu nome associado a uma grande reportagem na capa do jornal. Em razão disso, ela quebra um dos deveres fundamentais de todos jornalistas, previsto inclusive no Código de Ética elaborado pelo Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ): resguardar o sigilo das fontes. Passado esse primeiro desvio de conduta, o sentimento de culpa passa a guiar sua apuração, tornando-a facilmente influenciável por Gallagher, primeiramente colocado como vítima de uma reportagem precipitada.

Conclusão

Por sua relação de parentesco com o jornalismo, que reside na maneira similar de contar histórias, o cinema deve ser considerado como um ponto de partida para reflexões acerca do exercício da profissão. Através dos repórteres e editores retratados na tela grande, sempre oscilando entre o papel de vilão sem escrúpulos e fiel defensor da moralidade, é possível ter uma noção sobre os dilemas enfrentados por pelos jornalistas na vida real.

No assunto ao qual se refere este artigo, o relacionamento com as fontes de informação, os três filmes lembrados deixam claras as dificuldades impostas a quem deseja atuar neste ramo, que exige grande responsabilidade e discernimento para tomar as decisões certas, quase sempre sob pressão.

Por mais que pareça inalcançável a total transparência por parte dos jornalistas, essa deve ser uma busca incessante. Mediante esse esforço, a versão entregue ao público consumidor será a mais fidedigna possível.
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