Herman Melville (1819-1891) |
Em um número desconhecido do segundo andar de um prédio da avenida Wall Street, um escritório tem seu equilíbrio ditado pelo humor dos funcionários. Nipples, por conta da indigestão, vive em estado neurastênico durante a manhã, enquanto Turkey, seu colega de trabalho, tem tardes agitadas pela bebida que sorve no almoço. Desse modo, apesar de incomodado pelos acessos de fúria ou demasiada energia dos seus empregados, o advogado dono do mencionado escritório os mantém como seus copistas. O trabalho que exercem, abastecido por bolinhos de gengibre trazidos pelo mensageiro do escritório, um menino chamado Ginger Nut, compensa o alternado destempero dos dois escriturários.
Esse é o cenário que nos é apresentado por Herman Melville antes da contratação de um novo copista, que dá nome a este romance do autor de Moby Dick. Bartleby, descrito pelo narrador como “palidamente limpo, tristemente respeitável e incuravelmente pobre”, é incorporado à equipe para suprir um aumento da demanda, causada pelo novo cargo de escrivão-conselheiro jurídico do advogado. A escolha, segundo o próprio narrador, foi definida pelo aspecto tranquilo do novo funcionário, um contraponto ao temperamento instável dos outros dois copistas. A propósito, a busca pela estabilidade é uma marca do narrador deste texto; gaba-se por ser conhecido pela prudência e organização, mas logo nas primeiras páginas de seu relato deixa-se fustigar pela memória da extinção do Tribunal de Chancelaria de Nova York, do qual era conselheiro. Afinal, era um rendimento que esperava fosse vitalício, e não era natural ser dele tomado tão abruptamente.
A frase de Bartleby que deixa o escritório sem reação |
Natural foi o comportamento do novo funcionário nos primeiros dias. Dentro de seu biombo no escritório, arrematava todos os documentos que lhe eram delegados. Até que um pedido de conferência oral de uma das cópias encontrou singular resposta dele: “preferiria não fazê-lo”. A afronta, pois é assim que a resposta é encarada pelo advogado dono do escritório, o deixa tão perplexo que não há nem mesmo uma reação. Por sua característica de sempre fugir dos problemas, levar a vida mais fácil, como o próprio advogado diz, o novo funcionário acaba ditando aquilo que prefere ou não fazer, e assim se mantém até a derradeira linha da estória de Melville.
O escritor americano, nascido na Nova York de 1819, havia se destacado até então como um grande narrador de aventuras, inspiradas nas viagens que fez ainda jovem, logo após a morte do pai. Bartleby é um romance de uma fase mais madura, em que Melville não consegue mais desfrutar do mesmo reconhecimento obtido com suas narrativas fantásticas. Bartleby, apesar de excêntrico, nada tem de fantástico: sua maior característica é permanecer fiel a uma escolha, sem a submeter a nenhuma opinião externa: ele simplesmente decide que não quer mais fazer certas coisas e ponto.
Aliás, a atitude de Bartleby tem alguma coisa da Satyagraha Gandhiana, embora não haja uma razão revelada além da própria possibilidade de fazer escolhas. Não se trata de uma negativa irrefutável; preferir não fazer algo é tão mais inquietante porque não ofende, não causa um motivo suficientemente forte para uma reação à altura. A frase de Bartleby fica no limiar entre a afirmação e a negação, e até por isso é tão mais inquietante. É um estoicismo levado às últimas consequências.
Apesar de curta, a narrativa de Melville prima por descrever seus personagens sem perscrutar suas vidas antes do fato narrado. Há quase nada escrito sobre como vivia ou quem eram as famílias do advogado, de Nipples, Turkey ou Ginger Nuts: todos, assim como o escriturário Bartebly, não têm nada que o autor tenha considerado interessante de ser contado. De certa forma, levavam vidas tão solitárias e ordinárias como a de Bartebly, e nem por isso se rebelaram. Essa é a maior virtude de Bartleby a ser destacada: em um ambiente em que convém fazer o que é mandado e não questionar a mediocridade, ele preferiu não fazê-lo.
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