No início da década de 50, um burocrata da Companhia Indústrias Metálicas Previdente escreve seu segundo romance, seis anos após o primeiro, Terra do pecado. Sob o pseudônimo Honorato, confia o original a um amigo, com a esperança de ver o texto publicado. O amigo, o artista plástico Figueiredo Sobral, encaminha a obra à Empresa Nacional de Publicidade. A editora não responde e não devolve o original.
Restava uma cópia com o autor, mas esta se perde e nunca mais é encontrada. O romance some. Já na década de 80, a editora entra em contato com o ex-burocrata, agora escritor reconhecido, e informa que encontrou o manuscrito durante uma mudança. Ele não rejeita a obra, mas não quer vê-la publicada em vida, magoado pela recusa da publicação anos antes: recebe o manuscrito mas deixa a recomendação de que só publicassem o malogrado romance após sua morte.
Quase sessenta anos depois, consagrado como o único escritor de Língua Portuguesa a conquistar um Nobel de Literatura, o ex-burocrata está morto, embora sua palavra tenha adquirido status de leitura sacrossanta.
Esta poderia ser a sinopse de um romance ou roteiro de um filme, mas é a trajetória real de Claraboia, a obra não publicada do escritor português José Saramago, morto em 2010, à venda nas livrarias do Brasil a partir desta terça-feira (08/11), pela Companhia das Letras (384 páginas, R$ 36,80). Uma agradável e inesperada surpresa para os fãs do escritor português e mais uma história valiosa para a literatura.
Confira a sinopse da Companhia das Letras
Primavera de 1952. Um prédio de seis apartamentos numa rua modesta de Lisboa é o cenário principal das histórias simultâneas que compõem este romance da juventude de José Saramago. Os dramas cotidianos dos moradores — donas de casa, funcionários remediados, trabalhadores manuais — tecem uma trama multifacetada, repleta de elementos do consagrado estilo da maturidade do escritor, em especial a maestria dos diálogos e o poder de observação psicológica.
As janelas, paredes e corredores do velho edifício lisboeta são testemunhas privilegiadas das pequenas tragédias e comédias representadas pelos personagens. As peripécias de Lídia, uma bela mulher sustentada pelo amante misterioso, e Abel, um jovem outsider à procura de um sentido para a vida, se contrapõem ao árduo cotidiano dos outros moradores. As narrativas paralelas do livro são organizadas segundo as divisões internas do prédio, do térreo ao segundo andar.
No início da década de 1950, José Saramago já não era um nome totalmente desconhecido na cena literária portuguesa. Aos trinta anos, o futuro vencedor do prêmio Nobel publicara um romance — Terra do pecado (1947) —, e alguns de seus contos haviam saído em jornais e revistas de Lisboa, às vezes assinados com o pseudônimo “Honorato”. Saramago, ex-serralheiro mecânico e então um modesto funcionário da previdência social, também possuía diversos poemas e peças de teatro entre seus inéditos. Até 1953, o escritor iniciaria a redação de mais quatro romances, que ficaram inacabados.
Em 5 de janeiro daquele ano “Honorato” finalizava o datiloscrito de um livro de mais de trezentas páginas. O novo romance, em seguida encaminhado para publicação a uma editora lisboeta por intermédio de um amigo jornalista, acabaria esquecido no fundo de uma gaveta. O original nunca foi devolvido ao seu autor, que também não recebera resposta alguma. Na década de 1980, o já consagrado José Saramago era contatado pela mesma editora para publicar Claraboia.
A mágoa pela falta de resposta na juventude levou-o a declarar que não desejaria ver o romance editado em vida, deixando para seus herdeiros a decisão sobre o que fazer com o livro. Após seu desaparecimento, as inquestionáveis qualidades do romance, construído com perfeito domínio do espaço narrativo, justificam plenamente a opção de trazê-lo a público.
Leia trecho do romance inédito de Saramago
"Isaura dizia a si mesma que estava louca. A cabeça ardia-lhe, a testa escaldava, o cérebro parecia expandir-se e rebentar o crânio. E a insônia é que a punha neste estado. E a insônia não a largaria enquanto aqueles pensamentos a não largassem. E que pensamentos, Isaura! Que coisas monstruosas! Que aberrações repugnantes! Que furores subterrâneos empurravam os alçapões da vontade!...
Que mão diabólica, que mão maliciosa, a guiara na escolha daquele livro? E dizer-se que fora escrito para servir a moralidade! Decerto - afirmava o raciocínio frio, quase perdido no torvelinhar das sensações. Porquê, então, esta agitação dos instintos que quebravam algemas e irrompiam na carne? Por que não o lera friamente, sem paixão? Fraqueza - dizia o raciocínio. Desejo - clamavam os instintos sofreados, anos após anos desviados e recalcados como vergonhas. E agora os instintos sobrenadavam, a vontade afundava-se num pego mais negro que a noite e mais fundo que a morte.
Isaura mordia os pulsos. Tinha o rosto coberto de suor, os cabelos pegados à testa, a boca torcida num espasmo violento. Sentou-se na cama, meteu as mãos pelos cabelos, desvairada, e olhou em redor. Noite e silêncio."
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