segunda-feira, 7 de novembro de 2011

João do Rio, cronista da alma carioca

Paulo Barreto ou João do Rio

Os passos dados por João do Rio pelas ruas cariocas do início do século XX ajudaram a retratar de maneira inovadora as mudanças sofridas pelo então distrito federal durante a administração de Pereira Passos, prefeito responsável pelo período agudo de reformas urbanas que apresentaram ao Rio de Janeiro a modernidade arquitetônica em voga nas grandes cidades europeias. Nesse período, quando a imprensa brasileira dava grande ênfase à opinião e os jornalistas trabalhavam quase integralmente dentro das redações, a premência era se posicionar acerca das grandes questões da sociedade brasileira, ou do Rio de Janeiro, uma metonímia muito constante naqueles tempos. Quanto ao Bota Abaixo iniciado por Pereira Passos, grandes jornalistas, na maior parte também escritores e funcionários de carreira pública, logo vociferaram contra ou a favor das mudanças. A pena usada para escrever no jornal era a da opinião, dos argumentos apaixonados e efêmeros; a reflexão mais profunda era reservada à pena da literatura – que tinha no jornal uma grande porta de entrada. 

Avenida Central: uma das realizações
de Pereira Passos que mudaram o Rio
Nomes como Machado de Assis e Lima Barreto nos brindaram com crônicas e romances nos quais a cidade do Rio de Janeiro era palco e protagonista. No entanto, eram cronistas essencialmente literários, buscavam na realidade carioca material para seus escritos, sem firmar nenhum tipo de vínculo com personagens reais da cidade – Recordações do escrivão Isaías Caminha é, talvez, a única exceção. Até que surgiu o primeiro jornalista profissional do Rio de Janeiro, isto é, o pioneiro em dedicar-se exclusivamente ao trabalho no jornal. João Paulo Emílio Cristovão dos Santos Coelho Barreto, ou João do Rio, não à toa carregava em seu heterônimo mais famoso o nome da cidade que o vira nascer em 1881. Ele iniciou o trabalho jornalístico fora das redações, escrevendo crônicas embasadas pela observação atenta e entrevistas, com predileção especial pela temática do cotidiano urbano. 

Com um estilo que se aproximava da abordagem literária sem perder o método jornalístico, João do Rio conseguiu fundir duas penas que antes eram distintas, como um prelúdio do New Journalism que se desenvolveria nos Estados Unidos cinco décadas mais tarde. O jornalista mulato, obeso e homossexual confesso, disse assim em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras (ABL), em 1910: 


“A aspiração dos artistas novos seria a de fixar através da própria personalidade o grande momento de transformação social da sua pátria na maravilha da vida contemporânea; a de refletir a vertiginosa ânsia de progresso, esse aspecto incompleto, pouco constituído, agregado heteróclito de apetites bárbaros e delicadezas civilizadas da raça agora; a de agravar o instante em que os velhos sonhos afundam, com todas as valetudinárias superstições de outrora, inclusive a da moral, na eclosão de uma vida frenética e admirável.” 


E assim o fez. As crônicas de João do Rio, em especial as crônicas reunidas em A Alma Encantadora das Ruas, fixam com maestria a contemporaneidade carioca, tomando a rua, pela primeira vez valorizada no discurso jornalístico, como documento fiel dessa eclosão mencionada pelo recém-empossado imortal da ABL. As cenas descritas por João do Rio discorrem sobre um novo modelo de civilização que se erigia e a relação do autor com essa nova realidade, refletindo um pouco das características que agruparam diferentes autores do período sob a égide do pré-modernismo. 

A Alma Encantadora das Ruas 

Publicado por João do Rio em 1908, o livro A Alma Encantadora das Ruas é uma reunião de crônicas publicadas em jornais nos anos anteriores. A obra é dividida em quatro seções. A primeira delas, intitulada A Rua, traz uma única crônica de mesmo nome com um caráter notoriamente mais ensaísta que os textos seguintes. Numa escrita embebida de lirismo, João do Rio se aproxima muito do ensaio para defender a ideia de que a rua é dotada de um subjetivismo imanente, deslocado de seus habitantes e, ao mesmo tempo, refletido nestes. Mesmo assim há entrevistas e diálogos, uma marca do autor nas três seções que seguem. 

João do Rio faz aferições acerca da cidade através de suas incursões no espaço urbano da nova metrópole, e faz questão de deixa isso claro durante os textos. O “eu” quase sempre aparece, aproximando o autor do cenário e personagens descritos nas crônicas; além disso, a técnica de permear o texto com diálogos aproxima o leitor do cenário descrito e da linguagem utilizada nas ruas. 

Um exemplo claro do estilo utilizado por João do Rio pode ser encontrado na crônica Orações: depois de coletar material sobre os diversos tipos de preces entoadas pelos cariocas, ele cataloga as variações, as classifica e a partir daí faz uma análise sobre como esses atos litúrgicos estão emprenhados de interesses mesquinhos e de uma bajulação dos deuses. A comparação com a Íliada, colocando a luta contra a fatalidade como um símbolo da condição humana é bem própria do tipo de jornalismo de redação, baseado no lastro intelectual de quem escreve; mas nos textos de João do Rio, esse tipo de análise está ancorada por uma postura investigativa que orienta sua conduta de flâneur

Voltando à comparação com o New Journalism, seria proveitoso marcar uma diferença entre o jornalista carioca e um dos grandes expoentes da escola americana, Gay Talese. Perguntado por uma jornalista da Paris Review sobre por que citara a si próprio na terceira pessoa no fim do livro A Mulher do Próximo (Thy Neighbor's Wife), Talese respondeu que queria marcar sua distância dos eventos que o cercavam, que sempre procura a visão do outro lado da rua, e termina afirmando: “I’m never there. Fully”. Essas são as “cláusulas contratuais” do estilo de Talese com os seus leitores e com o objeto observado. João do Rio é mais direto, sua presença na cena é explícita e fundamental para a construção de suas observações, como no trecho abaixo: 


Eu estava exatamente defronte da igreja de Santana, dispondo de um automóvel possante. Era a mais que alegre hora da meia-noite que alguns temperamentos românticos ainda julgam sinistra. Aquele trecho da cidade tinha um aspecto festivo, um estranho aspecto de anormalidade. Das ruas laterais vindo em fila famílias da Cidade Nova, primeiro as crianças, depois as mocinhas, às vezes ladeadas de mancebos amáveis, depois as matronas agasalhadas em fichus; vinham marchando como quem vai para a ceifa, grossos machacares, de chapelão e casaco grosso; vinham gingando negrinhas de vestido gomado; “cabras” de calça bombacha, velhas pretas embrulhadas em xales. Era como uma série de procissões em que as irmandades se separavam segundo as classes. No adro, repleto, havia uma mistura de populaça em festa. Grupos de rapazes berravam graças, bondes paravam despejando gente, vendedores ambulantes apregoavam doces e comestíveis; todos os rostos abriam-se em fraterna alegria, e naquela sarabanda humana, naquele vozear estonteante, uma nota predomina – a do namoro. (...) A missa era um alegre pretexto e, se na classe burguesa o amor tinha uma cor tão suave, nas outras irmandades o entusiasmo era maior. 


Assim, presente por inteiro na cena, João do Rio reconstrói o que é uma noite de Missa do Galo em uma das quatro igrejas que ele visita durante a noite, das quais em apenas uma ele encontra uma pessoa realmente rezando naquela data especial. De dentro de um carro, o jornalista descreve os trajes das pessoas e como os grupos se separam de acordo com as classes sociais, e toda a comoção pela data santa era transformada em grande evento. Os jovens que utilizavam a data como pretexto para flertar, ambulantes que aproveitavam a aglomeração para vender comida. 

Na crônica Cordões, todo o texto é construído através de um diálogo travado entre João do Rio e um amigo quando os dois entram no caminho de um dos cordões de carnaval. Enquanto João do Rio se abriga numa porta para fugir da massa, o amigo o incita a juntar-se à manifestação popular. A partir daí, vão-se vários argumentos, alguns deles geniais como “A morena é uma preocupação fundamental da canalha”, até que o jornalista se convence da importância daquela manifestação carnavalesca e desce à rua junto da turba. Nessa mesma crônica, fica fácil perceber outra preocupação estilística de João do Rio: a composição sensorial do cenário descrito, falando de cheios e sons com profundo grau de detalhamento. 

Conforme destaca a antropóloga Julia O’Donnell em seu livro De olho na rua – A cidade de João do Rio, o trabalho empreendido pelo jornalista carioca se aproxima muito da pesquisa antropológica. A busca por uma essência da alma urbana, a tipificação social (destacadamente na seção O que se vê nas ruas), as especulações acerca de uma subjetividade coletiva, pontos que João do Rio tentava divisar em suas crônicas, são conceitos presentes também nas pesquisas etnográficas. 

Em entrevista concedida ao jornal O Globo, Julia O’Donnell afirma que o estilo de criação de João do Rio pode ser lido “como um verdadeiro trabalho de campo antropológico marcado por um método de coleta de dados atento não apenas aos detalhes visuais mas também à instância intersubjetiva das situações em curso”. 

Essa instância intersubjetiva da qual fala a antropóloga pode ser pontuada na crônica Presepes. Em certo trecho, após descrever uma das músicas cantadas durante uma noite de natal, João do Rio faz a seguinte reflexão: 


(...) Essas canções, porém, são toda a psicologia de um povo, e cada uma delas bastaria para lhe contar o servilismo, a carícia temerosa, o instinto da fatalidade que o amolece, e a ironia, a despreocupada ironia do malandro nacional. 


A ideia de um “malandro nacional” e uma “ironia despreocupada” remete à alienação, e esboça também a construção de um nacionalismo, mas essas não são inferências obrigatórias. A intenção, e talvez o mérito do método de construção da reportagem de João do Rio, não é fechar conclusões sobre todos os fatos e situações observadas, mas deixa claro que cada uma dessas manifestações populares tem algo a dizer sobre a nova organização social que ele visa apreender. 

Julia O’Donnell também frisa que os textos de João do Rio discorrem sobre “temas atuais e relevantes à dinâmica urbana em qualquer tempo e lugar, como a heterogeneidade de tipos humanos, a multiplicidade de espaços simbólicos e a circularidade cultural entre os diferentes estratos sociais”. Volto à crônica Como se ouve a missa do galo. Nessa noite relatada por João do Rio, ele vai da igreja de Santana ao convento da Ajuda, depois passa por Copacabana e volta à Lapa. Sua transitoriedade como jornalista, algo raro para a época em que viveu, faz com que seus textos sejam dotados dessa multiplicidade, desse caráter que transpõe barreiras sociais e se consolida como uma narrativa do urbano, da metrópole em construção. Fato emblemático dessa desenvoltura social de João do Rio é que ele, mesmo reunindo características que levavam o preconceito ao paroxismo no início do século XX – era gordo, negro e homossexual – teve seu cortejo fúnebre acompanhado por cerca de 100 mil pessoas, um décimo da população carioca no ano de 1921, quando o Rio de Janeiro tinha um número de habitantes estimado em um milhão.

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