domingo, 18 de dezembro de 2011

Cais das Sombras, um sopro de poesia realista

Jean e Nelly emoldurados na
janela do bar onde se conhecem
A poesia do realismo está profundamente impressa em Cais das Sombras (Le Quai des Brumes, 1938), obra de um dos principais diretores dessa vertente do cinema francês, Marcel Carné. Em uma leitura mais apressada, pode parecer uma contradição falar em poesia realista, mas é exatamente esse paradoxo que enriquece a história. Miséria, amor e fatalismo se combinam para contar a trajetória de pessoas marginalizadas, que vivem na pobre cidade portuária de La Havre, ocultas pela sombra de uma existência sem perspectivas. 

É nesse local que o soldado Jean (Jean Gabin) encontra refúgio após retornar – não se sabe de onde – em circunstâncias desconhecidas. Seu primeiro guia na nova cidade é um sujeito bêbado vestido em farrapos, que o leva para um bar localizado no meio do nada. Lá, um cenário pouco convencional para uma história de amor, como é típico do cinema francês da década de 30, Jean conhece a jovem Nelly (Michèle Morgan), e os dois, como num passe de mágica, trocam nomes e se apaixonam. 

A história de amor que se constrói entre Jean e Nelly – na época, com 17 anos – não sobrepõe em nenhum momento o pessimismo típico dessa fase do realismo poético francês. Em 1938, o cenário político no país não era dos mais animadores. Finda a Guerra Civil Espanhola, o fascismo espraiava sua asa negra pela Europa, preparando o cenário para a Segunda Guerra Mundial. O cinema, é claro, refletiu esse misto de temor e derrotismo que tomava conta da França de então. 

Dentro de uma análise mais didática, é possível separar o realismo francês em duas fases com limites cronológicos maleáveis, e abordagens um pouco diferentes. O Cais das Sombras estaria situado em uma segunda fase desse movimento, caracterizada pelo abatimento com relação ao fascismo mencionado anteriormente. Na primeira, marcada pela frente anti-fascista comandada pelos socialistas franceses, os filmes tinham como protagonistas os proletários que lutavam por melhores condições de vida, como em A Regra do Jogo (La régle du jeu, 1939), de Jean Renoir. 

Zabel e Nelly, uma relação dúbia
No bar em que conhece Nelly, Jean encontra outros tipos interessantes. Além do seu cicerone na cidade, o bêbado cujo maior sonho era dormir entre dois lençóis em uma cama limpa, há também Zabel, um homem repulsivo que é uma espécie de tutor de Nelly, embora suas intenções sejam claramente mais insidiosas que apenas proteger a jovem. Jean encontra ainda um pintor que merece destaque à parte: ele é atormentado pela acuidade da própria visão. Em uma de suas primeiras conversas, diz a Jean que consegue ver através das coisas, o cerne delas, sua decadência. Essa é uma alusão ao próprio estilo do realismo poético francês, que conjuga imagem, estilo e palavra para produzir uma outra possibilidade de relação com a narrativa cinematográfica. 

Tudo é sombra em La Havre
Nessa atmosfera cinzenta há ainda espaço para um humor sarcástico, construído em cima das impossibilidades, das limitações de cada personagem. Quando tenta embarcar em um dos navios atracados em La Havre com destino à Venezuela, Jean conhece um tripulante que, na verdade, queria ser um artista; nesse momento, Jean já tinha assumido a identidade do pintor que conhecera no bar, que depois de suicidar-se havia deixado para o soldado desertor suas roupas e identidade. Há ainda o bêbado que só queria uma cama limpa, o pintor que não conseguia desenhar um nadador sem vê-lo se afogar, e morre afogado... Até o desfecho do herói-soldado-desconhecido, que é deixado agonizando na lama por um tiro de um antes humilhado e amedrontado. 

Embora tenha sido o responsável por dirigir o filme, Marcel Carné  (1909 – 1996) sofreu com a posterior “desencarnação de sua reputação e talento”, como definiu o crítico André Bazin. Tido como principal nome do realismo poético pré-guerra, Carné experimentou críticas ferozes da geração seguinte do cinema francês, que tinha como grande porta-voz a revista Cahiers du Cinéma. Principalmente a partir da década de 50, os méritos artísticos de Michel Carné começaram a ser colocados em xeque pelos críticos mais jovens, que revisavam seu trabalho e atribuíam a maior parte dos méritos pelo sucesso de sua obra ao poeta surrealista Jacques Prévert, roteirista predileto do cineasta. Para os críticos da Cahiers, a recriação de bairros da classe trabalhadora, desertores, enfim, todo a construção do proletariado feita por Carné era mistificada, um retrato distante e impreciso feito por alguém que não fazia parte desse contexto social. Quando as críticas arrefeceram, veio o limbo: com o trabalho esquecido e uma produção pós-guerra quase inexpressiva, Carné pouco foi lembrando até morrer em 1996. 

De sua obra, merece destaque Boulervard do Crime (Les Enfants du Paradise, 1945). O longa conta a história de um triângulo amoroso mantido por Garance (Arletty), Frederick Lemaitre (Pierre Brasseur) e Baptiste (Jean-Louis Barralt). Eles vivem na Boulevard du Temple, também conhecida por Boulevard du Crime, por ser um local perigoso e com constantes assassinatos. Depois de sete anos, Garance está casada com um homem rico, porém infeliz, enquanto seus amigos e ex-amantes agora são artistas famosos.

Ficha Técnica:



País: França
Gênero: Crime, Drama, Suspense
Direção: Marcel Carné
Roteiro: Jacques Prévert
Produção: Gregor Rabinovitch
Design Produção: Alexandre Trauner
Música Original: Maurice Jaubert
Fotografia: Eugen Schüfftan
Edição: René Le Hénaff
Figurino: Coco Chanel
Efeitos Sonoros: Antoine Archimbaud



Trailer:


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