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Assim o diretor Sijie Dai apresenta Balzac e a Costureirinha (Xiao Cai Feng, 2002), adaptação do best-seller homônimo que ele mesmo escreveu. O convívio dos três protagonistas naquele ambiente de opressão e regulação intelectual os leva a, a partir da literatura “maldita”, opor-se a uma ideologia que não corresponde às suas convicções, seus anseios. Catorze anos antes, um filme francês chamado A Leitora (La Lectrice, 1988), dirigido por Michel Deville, também falava desse poder transformador da leitura.
Marie (Miou-Miou), apaixonada pela literatura, identifica-se profundamente com Constance, a personagem central do livro de Raymond Jean, A Leitora – obra da qual o longa é adaptado. No livro, Constance percebe que bastante gente é privada dos prazeres da literatura e, por isso, resolve colocar um anúncio no jornal em que se oferece como uma espécie de leitora profissional. Também interpretada por Miou-Miou, Constance é lida por Marie, que inspirada pela história escrita por Raymond Jean, repete o romance e adota o ato de ler como sua profissão. O roteiro, similar a uma daquelas espirais de Moebius dignas de um Charlie Kaufman, apresenta em diversas camadas a mesma força motriz que a literatura é capaz de empreender no longa de Sijie Dai, embora por caminhos diferentes.
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Constance e seu cliente paralítico: leitura em meio à descoberta da sexualidade |
E essa confusão acerca da natureza do trabalho de Constance lhe é exposta desde o início pelo redator de seu anúncio no jornal, que adverte para o caráter erótico que o texto redigido por ela poderia ter, apesar de sua intenção meramente profissional. Em paralelo, os romances de Balzac nada dizem sobre a cultura chinesa, aliás, passam longe de tê-la como um possível reduto de leitores. Ainda assim, os sentimentos libertários da costureirinha são atiçados por aquele texto clássico, sedutor, dono de um erotismo da mesma linhagem que o simples anúncio de Constance poderia instigar.
Por sua vez, em Balzac e a Costureirinha temos a literatura que pode se apresentar como escolha ou imposição, cada face com sua própria força. Enquanto os ensinamentos de Mao soam estéreis para aqueles camponeses iletrados, que o adulam muito mais por uma paixão cega que por convicção intelectual, os romances franceses apresentados pela dupla de jovens burgueses tocam diretamente no âmago da costureirinha, fazendo-a revisitar e reconstruir sua própria identidade. A crítica do filme a esse vazio de um discurso recebido acriticamente fica clara em uma das sessões de leitura lideradas por Luo e Ma, onde um romance de Balzac é apresentado como um escrito de um país amigo, o que traz a imediata simpatia dos ouvintes.
Interessante notar também que os dois longas esbarram nas diferentes vias de acesso à literatura. Assim como as pessoas “muito velhas, muito novas, muito tristes ou muito solitárias” que precisam dos préstimos de Constance para embarcar no universo da literatura, a costureirinha do longa de Sijie Daí é iletrada, e não seria seduzida pelos ideais oitocentistas da literatura francesa não fosse a leitura em voz alta de Luo e Ma. A ideia de que escutar um livro é “coisa de criança” ou uma prática antiquada, justificável apenas em tempos primitivos, é desmistificada por essas duas histórias, que não colocam o leitor/ouvinte em posição submissa ao locutor/escritor – pelo contrário, o processo de descoberta e mútuo e leva a destinos imprevisíveis.
Duas adaptações de obras literárias, os filmes conseguem trazer à tona um número considerável de “leituras” às quais a literatura pode ser submetida. Fascínio, doutrina, impulso, e todos os insondáveis sentimentos que podem estar contidos numa página escrita, esperando apenas algum leitor disposto a libertá-los.
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