sexta-feira, 27 de abril de 2012

A Leitora e Balzac e a costureirinha: o poder da leitura em duas adaptações cinematográficas

Na década de 70, em plena Revolução Cultural, dois jovens burgueses são enviados para uma pequena aldeia nas montanhas chinesas para seu período de reeducação. Íntimos de uma literatura agora proibida pelo regime comunista, Luo (Chen Kun) e Ma (Liu Ye) conhecem – e se apaixonam – por uma jovem costureirinha (Xun Zhou), e, invertendo a lógica do processo pretendido pelo governo maoísta, passam a iniciar os habitantes da aldeia, em especial a costureirinha, na distante realidade oitocentista, embrião dos ideais burgueses, que os livros de Zola, Balzac e Flaubert remontam com maestria.

Assim o diretor Sijie Dai apresenta Balzac e a Costureirinha (Xiao Cai Feng, 2002), adaptação do best-seller homônimo que ele mesmo escreveu. O convívio dos três protagonistas naquele ambiente de opressão e regulação intelectual os leva a, a partir da literatura “maldita”, opor-se a uma ideologia que não corresponde às suas convicções, seus anseios. Catorze anos antes, um filme francês chamado A Leitora (La Lectrice, 1988), dirigido por Michel Deville, também falava desse poder transformador da leitura.

Marie (Miou-Miou), apaixonada pela literatura, identifica-se profundamente com Constance, a personagem central do livro de Raymond Jean, A Leitora – obra da qual o longa é adaptado. No livro, Constance percebe que bastante gente é privada dos prazeres da literatura e, por isso, resolve colocar um anúncio no jornal em que se oferece como uma espécie de leitora profissional. Também interpretada por Miou-Miou, Constance é lida por Marie, que inspirada pela história escrita por Raymond Jean, repete o romance e adota o ato de ler como sua profissão. O roteiro, similar a uma daquelas espirais de Moebius dignas de um Charlie Kaufman, apresenta em diversas camadas a mesma força motriz que a literatura é capaz de empreender no longa de Sijie Dai, embora por caminhos diferentes.

Constance e seu cliente paralítico: leitura em meio à
descoberta da sexualidade
Os clientes de Constance incluem uma viúva húngara que aprecia passagens dos textos de Marx e Lênin; um adolescente paralítico descobrindo sua sexualidade através dos versos de Baudelaire e dos contos de Maupassant – assim como por meio das coxas nuas de Constance; um executivo que quer apenas aumentar sua cultura geral, mas não tem tempo para ler e uma criança que, com pais ausentes, vive enclausurada em uma mansão e começa a entrar em contato com a literatura. Em comum, esses personagens têm a peculiaridade de procurar nos livros uma fuga de seus fracassos mundanos, uma maneira de concretizar aquilo que na realidade parece impossível, transgredir. Além disso, todos têm na figura de sua leitora, Constance, um agente transformador, alguém capaz de, para além das páginas do livro, modificar um pouco essa realidade tão implacável – e aqui está o grande engenho do roteiro, pois, a rigor, Constance também é um personagem literário.

E essa confusão acerca da natureza do trabalho de Constance lhe é exposta desde o início pelo redator de seu anúncio no jornal, que adverte para o caráter erótico que o texto redigido por ela poderia ter, apesar de sua intenção meramente profissional. Em paralelo, os romances de Balzac nada dizem sobre a cultura chinesa, aliás, passam longe de tê-la como um possível reduto de leitores. Ainda assim, os sentimentos libertários da costureirinha são atiçados por aquele texto clássico, sedutor, dono de um erotismo da mesma linhagem que o simples anúncio de Constance poderia instigar.

Por sua vez, em Balzac e a Costureirinha temos a literatura que pode se apresentar como escolha ou imposição, cada face com sua própria força. Enquanto os ensinamentos de Mao soam estéreis para aqueles camponeses iletrados, que o adulam muito mais por uma paixão cega que por convicção intelectual, os romances franceses apresentados pela dupla de jovens burgueses tocam diretamente no âmago da costureirinha, fazendo-a revisitar e reconstruir sua própria identidade. A crítica do filme a esse vazio de um discurso recebido acriticamente fica clara em uma das sessões de leitura lideradas por Luo e Ma, onde um romance de Balzac é apresentado como um escrito de um país amigo, o que traz a imediata simpatia dos ouvintes.

Interessante notar também que os dois longas esbarram nas diferentes vias de acesso à literatura. Assim como as pessoas “muito velhas, muito novas, muito tristes ou muito solitárias” que precisam dos préstimos de Constance para embarcar no universo da literatura, a costureirinha do longa de Sijie Daí é iletrada, e não seria seduzida pelos ideais oitocentistas da literatura francesa não fosse a leitura em voz alta de Luo e Ma. A ideia de que escutar um livro é “coisa de criança” ou uma prática antiquada, justificável apenas em tempos primitivos, é desmistificada por essas duas histórias, que não colocam o leitor/ouvinte em posição submissa ao locutor/escritor – pelo contrário, o processo de descoberta e mútuo e leva a destinos imprevisíveis.

Duas adaptações de obras literárias, os filmes conseguem trazer à tona um número considerável de “leituras” às quais a literatura pode ser submetida. Fascínio, doutrina, impulso, e todos os insondáveis sentimentos que podem estar contidos numa página escrita, esperando apenas algum leitor disposto a libertá-los.

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