quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A verdade dos documentários

A nomenclatura dada ao tipo de produção audiovisual que supostamente teria um compromisso maior com a verdade, propondo até retratá-la por inteiro – o documentário – sempre foi alvo de controvérsias. Desde Dsiga Vertov e seu cinema verdade, os produtores discutem a possibilidade do cinema atuar como um captador da realidade do mundo, uma forma de gerar “documentos da realidade”. Os problemas oriundos dessa pretensão são muitos, passando por exemplo pela relação das pessoas retratadas com a câmera e o cineasta, pondo em dúvida até que ponto agem naturalmente quando estão sendo filmadas ou se encenam, tentando criar uma imagem que não corresponde ao seu comportamento cotidiano. Ainda: será que essa mudança de comportamento invalidaria o caráter documental da produção? 

A possibilidade de encenar em um documentário esmaece a linha divisória existente entre esse gênero e as demais produções cinematográficas. Em seu texto sobre a estética do documentário clássico, Silvio Da-Rin destaca o pensamento do cineasta inglês Grierson sobre essa classificação das produções. Grierson inclui em uma “categoria inferior” aqueles que raramente descrevem a realidade, como os newsreelers, os interest films, os filmes educativos ou científicos e os travelogues. Na “superior”, os filmes que deveriam ser denominados documentários que, nas palavras de Da-Rin, “passam de descrições simples (ou fantasiosas) do material natural, para o seu arranjo, rearranjo e formalização criativa.” 

O trecho do artigo de Grierson destacado por Da-Rin deixa bem claro o quão problemática é essa divisão. Primeiro, porque o cineasta inglês fala em filmes de uma categoria inferior que “raramente descrevem a realidade”, ou seja, em alguns momentos eventualmente uma produção, que não um documentário, pode descrever os pormenores do real. Além disso, Grierson ainda fala do “arranjo, rearranjo e formalização criativa” do material natural. Ora, é um tanto quanto controverso pensarmos em um retrato incólume da realidade diante de tantos filtros, arranjos e rearranjos de caráter tão pessoal. Até porque, como afirma Ismael Xavier em texto que trata da decupagem clássica, um dos grandes objetivos do cinema é passar o ideal de naturalidade da cena e invisibilidade da montagem, chamando o espectador para dentro da película para aceitá-la como factível, numa espécie de reconhecimento que a exibição cinematográfica é algo desacoplado, não-pertencente à vida real das pessoas. 

Podemos verificar que vários autores lograram sucesso e destaque no cenário cinematográfico atuando como documentaristas. Michael Moore, com seu estilo crítico e politizado, consagra o padrão com extensa utilização de sua própria voz em off – reforçando o caráter subjetivo que o documentário pode assumir –, entrevistas de pessoas envolvidas nos problemas retratados em seus filmes e a construção lenta e gradual do seu argumento. Essa subjetivação da realidade fica explícita ao extremo no seu documentário sobre o atentado ao Instituto Columbine, denominado Bowling for Columbine, onde ele apresenta claramente uma versão para o fato e usa a fachada documentarista para usar seus argumentos. Diferencia-se um pouco do primeiro Eduardo Cotinho, que já adota um estilo de intermediador entre o personagem retratado e a câmera, deixando mais espaço para que o estado natural da pessoa filmada se manifeste. É claro que em Jogo de Cena Coutinho subverte totalmente essa ideia de documentação ao bombardear o espectador com diferentes pessoas contando a mesma versão de uma história. Nesse sentido, ele se aproxima mais do ideal de Grierson sobre a abordagem do cineasta em relação ao seu retratado, onde “(...) para que a espontaneidade do comportamento natural fosse inteiramente preservada, a filmagem deveria ser precedida de um período de convivência do cineasta com o ambiente e as pessoas do lugar.” Ou seja, Grierson pensava numa espécie de pesquisa etnográfica visual, usando o cinema como uma forma de retratar pessoas em seu comportamento mais natural possível, assumindo um viés mais antropológico. 

Mas seria possível prescindir desse processo de “avizinhamento” do cineasta em nome de um verdadeiro choque de realidade, quando as pessoas ao menos sabem que estão fazendo parte de um filme? Essa foi a estratégia usada por Sacha Baron Cohen para inserir a comédia no gênero documental, ou melhor, criar um novo gênero comumente chamado de mockmentary, termo em inglês cujo prefixo pode ser traduzido como “imitar debochadamente” . Através de um misto de encenação e filmagens não consentidas pelos personagens, Sacha ajuda a demolir a ideia de realidade documental, até mesmo a partir dos processos movidos contra ele. Digo isso porque alguns dos participantes do filme Borat processaram Sacha por ter usado cenas nas quais eles próprios se manifestam de forma preconceituosa ou hostil, alegando que se estivessem cientes que estavam fazendo um filme não diriam tais coisas. Está aí o “deboche do documental” a que se refere o nome do subgênero, ressaltando a alteridade existente entre o real que vivemos e aquele que desejamos mostrar. 

Dentro dessa dualidade existente entre documentar e encenar, obtém igual destaque o gênero docudrama, que tem Peter Watkins como precursor. Nessa estética, a encenação é utilizada para reconstruir uma realidade passada – como nas reconstituições de crimes comuns em programas policiais. Ou seja, é uma encenação que tem valor documental por ser embasada em um fato concreto. A criação desse neologismo para abarcar essa nova estética audiovisual só reforça que o rótulo “documentário” não é muito eficaz no enquadramento das produções, por ser uma contradição entre termo e referente. A partir do momento que nem todo documentário – ou subgênero – é um registro feito sem encenação, há uma imbricação indelével com as demais produções. Uma comparação entre o cinema e a literatura pode ajudar a explicar melhor esse ponto. Quando lemos A Metamorfose, de Kafka, no primeiro instante o enredo parece ser de uma fantasia total, algo que vá levar o leitor a divagações de caráter fantasioso. No entanto, o que se percebe ao longo do romance é que tudo é como está acontecendo, não há fantasia, devaneio ou sonho. Gregor simplesmente virou um inseto horrível da noite para o dia, seus familiares passam a vê-lo dessa maneira e a estória segue, naturalmente. A Metamorfose é um importante exemplo de como algo criado pode ser árido, como a realidade, tornando perigosa a criação de um rótulo documentário para separar algo e dizer: “aqui quem fala é a verdade, não há influências pessoais”. 

O gênero documental seria uma tentativa de forjar uma autoridade de imparcialidade no trato da apreensão da realidade que é inatingível, pois, como até mesmo a filosofia discute, a realidade é construída através das visões próprias de cada um, ela não se conta espontaneamente. Por isso é perigosa a adoção do rótulo documentário, por ser uma espécie de púlpito onde só aqueles que tem alguma seriedade e pretendem passar uma mensagem séria podem subir, o que deturpa a própria intenção do audiovisual e emplaca a dramatização como puro entretenimento, quando esta pode ser tão eficaz para suscitar questões relevantes quanto o documentário.
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