sábado, 19 de novembro de 2011

Vingança em Poe, Maupassant e Quiroga

A literatura, desde que a constrói o homem, tenta domar no universo da palavra os variados sentimentos e emoções que permeiam a experiência humana. A vingança é um desses sentimentos, e talvez o mais humano deles. Em sua grande e pretensiosa História, Heródoto, após longos anos viajando por aquelas três porções de continente que delimitavam todo o universo de sua época – um legítimo e pioneiro flâneur – formula um postulado que pretendia explicar todos os conflitos e animosidades que presenciara ao longo de sua jornada. Para isso, bastaria responder a uma simples indagação: quem foi o primeiro a causar prejuízo a alguém? 

E por que essa pergunta poderia dar conta de tantas explicações? Porque, conforme as andanças do grego permitiram inferir, entre os homens está presente o secular direito de vingança, que se transfigura em alguns casos numa obrigação moral. No tempo de Heródoto, a vingança era sagrada, e quem não a cumprisse poderia ser amaldiçoado pelo seu próprio círculo social. Não importa quanto tempo leve, a vingança vem sob o signo da Justiça, podendo ser aplicada por deuses ou mesmo pelo Destino; trata-se de um direito atávico: se não é possível explicar uma desgraça qualquer, simplesmente você fora alcançado por um delito cometido há quatro gerações por sua família, e que agora finalmente pôde ser compensado. 

Podemos encontrar várias manifestações do entendimento da vingança ao longo da história da humanidade que tornam plausível o postulado de Heródoto. Não era essa sensação de Justiça que orientava a Lei de Talião, olho por olho, dente por dente? Já na Bíblia, durante o sermão da montanha, Jesus assim dissera: “Vocês ouviram o que foi dito: ‘Olho por olho e dente por dente! ’ Eu, porém, lhes digo: não se vinguem de quem fez o mal a vocês. Pelo contrário: se alguém lhe dá um tapa na face direita, ofereça também a esquerda! Se alguém faz um processo para tomar de você a túnica, deixe também o manto! Se alguém obriga você a andar um quilômetro, caminhe dois quilômetros com ele! Dê a quem lhe pedir, e não vire as costas a quem lhe pedir emprestado (Mateus 5: 38-42). Na moral cristã, a redenção é mais valiosa do que a punição pelos erros. 

No judaísmo, por sua vez, o infrator da Torá tem de ser condenado, mas não como uma reparação à pessoa injustiçada, e sim a Deus, que formulara as leis sagradas; a vingança tem de ser empreendida pelos justos. Independente da ética ou moral que vise a sustentar ou coibir o desejo de vingança, é importante ressaltar que se trata de uma questão essencial para a felicidade e, em última instância, para a vida humana. O mal não é uma questão que possa ser transpassada sem danos posteriores a não ser que seja resolvido, seja por resignação ou ação direta. 

Voltando à literatura, o formato do conto foi um dos que se adequou de maneira mais eficaz à representação da vingança. Isso porque em ambos tudo o que se faz concorre para a concretização de um objetivo, é preciso diminuir ao máximo as arestas e chegar ao cerne da questão – os acessórios, na vingança, denotam uma sordidez desnecessária que desvirtua a aplicação da justiça; no conto, diminuem o impacto do nocaute, tomando emprestada a metáfora usada pelo contista Julio Córtazar em seu Valise de Cronópio

Poucos operaram esta máquina de criar interesse como os três contistas que serão analisados por aqui. Todos produziram durante o século XIX, o tão aclamado século do romance, e mesmo assim se destacaram com narrativas curtas, na maioria das vezes dedicadas a periódicos como jornais e revistas. Apesar da multiplicidade e diferenças de estilos, Guy de Maupassant, Edgar Allan Poe e Horácio Quiroga são classificados como escritores de um gênero bastante fluído, ora chamado de horror, ora terror, mas que, a meu ver, tem sua melhor definição na expressão “fantástico”. 

Neste artigo, que tem por objetivo discutir o tratamento dado à vingança na literatura dita “fantástica”, será analisado um conto de cada autor supracitado. Do americano Edgar Allan Poe, discutiremos O Gato Preto; do francês Guy de Maupassant, Uma Vendeta, e, finalmente, O solitário, do escritor uruguaio Horácio Quiroga. Vamos aos contos! 

Poe e a vingança sugerida 

Ilustração do escritor americano
O americano Edgar Allan Poe, considerado um dos “escritores malditos” da literatura mundial, nos oferece em Gato Preto um relato que se assemelha a um pedido de ajuda de um assassino. Pois é assim que o conto começa: um homem declara que vai relatar alguns fatos que, apesar de domésticos, lhe causam horror. Seu objetivo é simplesmente conseguir de alguém alguma explicação lógica para aquilo que ocorrera com ele depois do assassinato de seu gato de estimação. Logo após a morte do animal, sua casa pega fogo, e a única parede que permanece de pé é uma onde está gravada a imagem de um grande felino. Depois, para aplacar a culpa deixada pela morte atroz, o narrador do conto leva para casa um outro gato, igualmente preto e de mesmo tamanho, inclusive com uma mesma marca que o primeiro animal carregava – uma forca, palco do infortúnio do primeiro bichano. Para finalizar a série de eventos macabros, o narrador mata a própria esposa e esconde o cadáver, que só é descoberto pela polícia porque o novo gato preto, tão similar ao primeiro, revela com um miado o sepulcro improvisado. 

A questão que fica posta, pelo espanto do narrador e pelas diversas coincidências existentes entre os dois gatos pretos é a seguinte: o segundo animal seria uma espécie de reencarnação do primeiro, que viera lhe fazer justiça contra as maldades praticadas pelo dono? Em nenhum momento o narrador admite a possibilidade, mas fica claro que é este o seu temor. A vingança é sugerida pelas circunstâncias, embora o narrador não confesse ser essa sua desconfiança porque, como ele mesmo diz, “se trata de um caso que meus próprios sentidos se recusam a aceitar”. 

A maneira como Poe constrói o definhamento do caráter do assassino desde sua infância até o vício alcoólico durante o casamento pode parecer detalhada demais a primeira vista, mas compõe eficazmente a atmosfera soturna do conto. Em Valise de Cronópio, Julio Cortázar diz que “todo rodeio é desnecessário sempre que não seja um falso rodeio, ou seja, uma aparente digressão por meio da qual o contista nos agarra desde a primeira frase e nos predispõe para recebermos em cheio o impacto do acontecimento”. Pois é exatamente esse o maior mérito do Gato Preto de Poe: toda a explanação inicial e o consequente aumento do ódio do narrador pelo gato, até a morte do animal, deixam sempre a sensação de que as coisas não vão acabar bem, preparam o leitor para o impacto final, que só vem no último parágrafo. 

Edgar Allan Poe é até hoje lembrado também por sua capacidade de, através dos contos fantásticos, versar sobre sentimentos terrenos, não necessariamente atrelados ao mundo onírico de seus contos. Nascido na cidade de Boston em 1809, a história familiar de Poe ajuda a ter uma ideia do lastro de experiência que fundou o seu gênio criativo, destacadamente nos contos de mistério: seus pais eram atores fracassados e morreram quando Poe tinha apenas dois anos; ele tinha um irmão tuberculoso e uma irmã epiléptica, e, após a morte dos pais, fora adotado por um casal de Richmond, tornando-se seu único filho. Na fase adulta, viciado em jogos e no álcool, ainda sofreu uma grande desilusão amorosa quando sua namorada Elmira Royster marcou noivado com outro homem. Talvez essa sequência de traumas explique a forma personalista que pode ser observada na obra de Poe; numa outra leitura de Tólstoi, para quem um homem que queira falar do mundo deve primeiro falar de sua aldeia, Poe falava da condição humana através de um olhar que estava voltado para dentro de si mesmo. Como Cortázar aponta, “essa esquizofrenia ilumina a assombrosa falta de comunicação da sua literatura com o mundo exterior. (...) Só sabe o que ocorre nele, sabe clara ou obscuramente, mas o sabe. E dessa forma que o terror da sua alma se converte no da alma”. 

Ao falar sobre a vingança de um Destino implacável ou uma alma reencarnada, Poe mais uma vez põe para funcionar sua inconfundível máquina literária, onde o assombro e o fantástico concorrem para externar a confusão de pensamentos de uma mente conturbada como é a sua própria. 

Maupassant e o maquiavelismo 

A vendetta, palavra italiana que significa vingança, desforra, é o caráter mais primordial deste sentimento, a vingança que se adquire como direito por uma desonra, e que deve ser levada a cabo pelos familiares do alvo da ofensa. Segundo a tradição corsa, origem provável do costume, a vendeta tem de ser praticada sempre por um homem. 

Guy de Maupassant, em seu conto Uma Vendeta, publicado pela primeira vez no jornal Le Gaulois, em 1883, retrata a tenacidade da viúva de Paolo Saverini em vingar a morte do filho. A história se passa na própria ilha de Córsega – por sinal, os dois primeiros parágrafos são destinados a descrever o ambiente da ilha. Nicolas Ravelati mata o filho da viúva, chamado Antoine Saverini, após uma discussão. Não se conta qual teria sido o motivo da discussão ou a relação anterior entre os dois rapazes, tendo sido a morte, descrita em três linhas, causada por uma punhalada à traição. 

Quando o corpo do filho é levado para casa, a viúva jura sobre o cadáver que lhe dará a vendeta; e faz isso sem nenhuma comoção mais efusiva, ao passo que a cadela da família, de nome Vivaz, uiva pesarosamente pela morte do dono. A partir daí, a velha viúva começa a planejar como procederá com a vendeta, pedindo a ajuda de Deus para lograr êxito em sua missão. Quando finalmente atina para a maneira de vingar o filho, passa a submeter a cadela Vivaz a períodos de abstinência, sucedidos pela oferta de uma generosa peça de carne, sempre escondida na altura da garganta de um boneco de palha. O procedimento, que objetivava treinar a cachorra para matar Ravolati, dura três meses, orquestrado maquiavelicamente pela viúva Saverini. Ao fim do período de treinamentos, a viúva se veste como um homem velho – afinal, a tradição só dá aos homens o direito de exercer a vendeta – vai à casa de Ravolati e faz com que a cachorra o devore. 

Não há, em Uma Vendeta, o nocaute de que fala Cortazar, ou ao menos ele não está na superfície da narrativa. Mas, como aponta o também argentino Ricardo Piglia, “O conto é um relato que encerra um relato secreto. Não se trata de um sentido oculto que dependa de interpretação: o enigma não é outra coisa senão uma história contada de um modo enigmático”. E qual seria então a história secreta que Maupassant guarda em Uma Vendeta? Considero o título uma pista: ao dizer que se trata de uma vendeta, o escritor deixa subentendido que “o prazer sádico, e aterradoramente humano, de experimentar o mal em quem lhe fez experimentar o mesmo mal” é algo corriqueiro, próprio da condição humana e que nem mesmo perturba sua consciência, afinal, o conto termina da seguinte maneira: “À tardinha, a velha estava de volta a sua casa. Ela dormiu bem, naquela noite”. 

Maupassant nasceu em 1850, na França. Primo por parte de mãe de Flaubert, teve sua carreira literária apoiada pelo autor de Madame Bovary e conseguiu grande sucesso com a publicação de mais de 300 contos, entre os mais famosos Bola de Sebo e O Horla, que o tornaram um escritor rico e famoso. Morreu em 1893, aos 43 anos, um ano após tentar suicídio por conta dos tormentos causados pela sífilis. 

Quiroga e a vingança justa 

Horácio Quiroga é um daqueles escritores cuja biografia poderia ser facilmente transportada para a literatura, dada a miríade de desventuras e situações assombrosas ocorridas em sua vida. Ele nasceu em 31 de dezembro de 1878 na região de Salto, no Uruguai, onde seu pai trabalhava como vice-cônsul argentino. Sua vida, em uma versão condensada, pode ser descrita assim: seu pai morre durante uma caçada quando Quiroga tinha um ano, não se sabe se por suicídio ou acidente; seu padrasto, paralítico, suicida-se com um tiro de escopeta quando o escritor tinha 16 anos; poucos anos depois, durante o exame de uma arma de duelo, Quiroga mata acidentalmente seu melhor amigo, Federico Ferrando; sua primeira esposa comete suicídio; Quiroga morre em 1937. 

Todo esse infortúnio acaba se refletindo na produção literária do uruguaio. Tanto que seu livro mais aclamado se intitula Contos de Amor, de Loucura e de Morte, o que parece ser um resumo em três palavras da vida do escritor. Para falar de vingança na obra de Quiroga, tomemos por objeto de análise o conto O Solitário. Nesta narrativa, o joalheiro Kassim, homem enfermiço e sem nenhum jeito para fazer fortuna, produz jóias belíssimas que são cobiçadas pela sua jovem esposa. Sem poder presenteá-la com aquelas pedras trabalhadas que são sua fonte de sustento, Kassim é constantemente humilhado pela jovem, até que, num ato calculado, crava no coração da mulher um alfinete de gravata que ela tanto almejava. 

Grande parte de O Solitário é dedicada a mostrar como a esposa de Kassim fazia cobranças desmedidas sobre sua capacidade de enriquecer, pois a riqueza era o que ela esperava do matrimônio, e também a compulsão que a jovem adquiriu pelas pedras preciosas, a ponto de pedir ao joalheiro praticamente tudo o que ele produzia. Toda essa atmosfera opressiva em torno da personagem de Kassim, que é pressionada e retratada como fraca e enfermiça, acabam transmitindo ao leitor a sensação de que o momento decisivo do conto, quando Kassim mata a própria esposa, funciona como uma vingança justa. Considero que aí reside a armadilha desse conto quiroguiano: ao fazer toda essa construção em favor de Kassim, o escritor naturaliza em quem está lendo que o assassinato, no caso, é algo aceitável a até mesmo justo – mal comparando, vejo uma semelhança de Kassim com o Raskólnikov de Dostoiévski, que em certo ponto parece ter sido vítima e não assassino da senhora da casa de penhora. 

Isso se reforça porque, como lembra Piglia, “os finais são formas de encontrar sentido na experiência”, e toda a experiência descrita no conto fundamentam perfeitamente este final. E mesmo assim, o arremate da narrativa não fica óbvio ou menos impactante, pois a frieza e dureza de espírito que Kassim adquire nos momentos derradeiros dão intensidade ao momento do assassinato. 

Horácio Quiroga, que citava no seu Décalogo do Contista Maupassant e Poe como possíveis mestres a se seguir, acabou se igualando aos últimos no patamar de grandes contistas da literatura fantástica. 

Conclusão 

Ao analisar os métodos utilizados por três dos maiores contistas do século XIX para a construção de um exemplar de seus contos fantásticos, é essencial ter em mente que este é um gênero – tanto o conto quanto a categoria fantástica – que exige uma participação ativa do leitor. Conforme escreve Umberto Eco, “qualquer narrativa de ficção é necessária e fatalmente rápida porque, ao construir um mundo que inclui uma multiplicidade de acontecimentos e personagens, não pode dizer tudo sobre esse mundo. Alude a ele e pede ao leitor que preencha toda uma série de lacunas”. Isso se potencializa no conto pelas características do gênero, e em especial o conto fantástico, por se tratar, na maioria das vezes, de fenômenos que não acontecem naturalmente. Neste aspecto, levando em conta os contos selecionados de cada autor, aquele que mais exige uma participação do leitor é Poe em Gato Preto; o pedido inicial do personagem por alguém que possa dar algum sentido aos acontecimentos que ele irá narrar em seguida já pavimenta esse caminho de participação do leitor. 

Apesar de todos os três contos lidarem de alguma forma com o tema vingança, nenhum é exaustivo ou aborda o tema de maneira óbvia. Em Valise de Cronópio, Julio Cortázar lembra que “O contista sabe que não pode proceder acumulativamente, que não tem o tempo por aliado; seu único recurso é trabalhar em profundidade, verticalmente, seja para cima ou para baixo do espaço literário. (...) em literatura não há temas bons nem temas ruins, há somente um tratamento bom ou ruim do tema”. Nos três contos analisados, inclusive, tenho a impressão que o final, onde se concentra o momento de tensão dramática do texto, foi definido antes de todo o resto. Em Poe essa é uma inferência óbvia, mas em Quiroga e Maupassant, o assassinato da esposa por Kassim e a vendeta realizada pela viúva Saverini, respectivamente, parecem ter sido as primeiras ideias de cada autor. 

Ao contista não é permitido aquele discurso de que os personagens ganharam vida e cresceram na trama conforme sua própria disposição; como Horácio Quiroga escreve em seu decálogo, um bom contista deve pegar seus personagens pela mão e os conduzir firmemente até o final, e as três primeiras linhas têm quase a mesma importância que as três últimas. 

A vingança, como sentimento que permeia desde os primórdios as relações humanas, despertou o interesse como tema de três grandes contistas do século do romance. Sua relação com o humano, conforme discorrido na introdução do artigo, pode ser apreendida de diversas maneiras. No conto fantástico, a vingança, conforme foi possível perceber por meio dos três contos analisados, é tema excelente para retratar uma faceta humana que é, em geral, renegada: nossa capacidade de fazer o mal a outrem, e ainda de regozijar-se por tê-lo feito.
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